O Patriarca russo Kirill (Gundiaev) demitiu abruptamente e colocou em julgamento eclesiástico o seu representante máximo na Europa Ocidental, incluido em Portugal e na
Espanha, o Metropolita Nestor (Evgeny Sirotenko), escreve Novaya Evropa.
Na noite de sábado, 8 de novembro, um breve comunicado apareceu no site oficial da IOR: “Por ordem de Sua Santidade Kirill [..] o Metropolita Nestor de Korsun e da Europa Ocidental foi destituído de seu cargo como chefe do Exarcado Patriarcal da
Europa Ocidental, bem como das dioceses e paróquias de Korsun, da Diocese Hispano-Portuguesa e das paróquias do Patriarcado de Moscovo/ou na Itália, em decorrência dos processos judiciais eclesiásticos
instaurados contra ele. A administração temporária das referidas estruturas canônicas foi confiada ao Metropolita Mark de Ryazan e de Mikhailov.”
Acredita-se que o referido Mark possui o passaporte de um dos paises da União Europeia. Há um ano atrás, na auge do escândalo de cariz homosexual,
envolvendo a demissão do Metropolita de Budapeste e da Hungria — Hilarion (Alfeyev), Mark foi encarregado da administração das paróquias da IOR na Hungria.
O Estatuto da IOR não concede ao patriarca russo o direito de destituir unilateralmente exarcas e administradores diocesanos. Tais decisões são
geralmente tomadas por um órgão colegiado — o Santo Sínodo. No entanto, a própria existência deste tribunal e a legitimidade de sua composição são temas de debate
entre especialistas em direito canônico.
Por um lado, poucos se surpreendem com o facto de o patriarca Kirill governar a IOR de uma forma absolutamente arbitrária, desconsiderando os cânones
e as leis. Por outro lado, isso desvaloriza suas decisões — pelo menos aos olhos das estruturas e crentes ortodoxos ao nível internacional, fora da IOR. Por exemplo, o Patriarcado de Constantinopla não
tem problemas em aceitar clérigos “expulsos” pela IOR por sua posição contra a guerra russa na Ucrânia, considerando as suspensões moscovitas como canonicamente nulas e sem nenhum
efeito.
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Bispo Nestor durante a visita de putin ao Centro Espiritual e Cultural Russo em Paris, 29 de maio de 2017. Foto: kremlin.ru |
O Metropolita Nestor (Evgeny Sirotenko na vida civil), de 51 anos, desde 1999 serviu na França e na Espanha. Não tem histórico de
envolvimento em escândalos públicos. É responsável pelas paróquias da IOR da Europa Ocidental (França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Espanha, Portugal e Itália). Em 2022-23,
ele se permitiu uma discreta dissidência contra o Kremlin — por exemplo, não perseguiu, como era exigido por Moscovo, o Arcipreste de Madrid, Andrei Kordochkin, que denunciou a “natureza satánica”
da guerra russa na Ucrânia. De momento os paroquianos da Catedral da Trindade em Paris já estão reunindo/coletando assinaturas em apoio ao seu bispo e, em conversas informais, expressaram inclusive a disposição
de apoiar sua saída da IOR, talvez para o Patriarcado de Constantinopla. Afinal, o rebanho ortodoxo no Ocidente é diferente do da rússia, e os paroquianos se insurgem contra as decisões não
transparentes da liderança da igreja moscovita.
Evgeny Sirotenko nasceu em 4 de setembro de 1974, em Moscovo/ou. Formou-se na Faculdade de Ciência da Computação do Instituto Histórico
e Arquivístico da Universidade Estatal russa de Humanidades e trabalhou no Ministério das Relações Econômicas Externas/Exteriores da federação russa.
“Rejeitando o Mal e a Guerra”
Em 6 de abril de 2022, o Metropolita Nestor e o Arcebispo Francisco Javier Martínez, representante da Conferência Episcopal Espanhola, publicaram uma
declaração conjunta condenando as ações da rússia no território soberano da Ucrânia. O texto ainda está disponível no site oficial da Diocese Hispano-Portuguesa
da IOR, mas somente em espanhol. O documento começa com uma expressão de solidariedade “aos nossos irmãos ortodoxos, católicos e pessoas de todas as fés em relação à
invasão da Ucrânia pela rússia”. Recordando os mandamentos pacifistas do Evangelho, o Exarca Patriarcal da IOR, juntamente com seu homólogo católico, apela para “o fim da violência
e da barbárie, e para que se ouça na consciência a voz de Deus, que rejeita o mal e a guerra”.
Quando o Patriarca Kirill, de forma não canônica, suspendeu o Arcipreste Andrei Kordochkin, reitor da Catedral de Madrid de seu ministério, o Metropolita
Nestor o protegeu tacitamente e não o demitiu oficialmente da Diocese. Isso provocou a ira de um dos bispos mais agressivos da IOR — o “Exarca da África”, Metropolita Leonid (Gorbachev) que
advertiu: “Ninguém está nos pedindo para se lançarmos às baionetas, mas devemos permanecer fiéis. Teremos que tanto ouvir, quanto obedecer”. Apesar desses alertas, em fevereiro
de 2023, o vigário de Nestor, Bispo Petru (Prutyanu), concedeu uma entrevista a uma publicação católica na qual expressou uma certa simpatia pela Ucrânia, chamando a guerra russa na Ucrânia
de “escandalosa”.
A continuidade dessa linha de ação por parte da liderança do Exarcado da Europa Ocidental, e em particular da Diocese Hispano-Portuguesa, é
evidenciada pelo encontro informal de Nestor com o Metropolita Olexandre (Drabinko), figura conhecida na Igreja Ortodoxa da Ucrânia, que Moscovo/ou habitualmente chama de “cismática” e “nacionalista”.
O encontro ocorreu em Madrid, em meados de outubro de 2025, quando ambos os metropolitas estavam presentes, e foi inteiramente fraternal.
A IOR não apenas proibiu oficialmente aos seus subordinados qualquer contato com a Igreja Ortodoxa da Ucrânia e com o Patriarcado de Constantinopla, como
também considera Drabinko um “traidor” e “desertor”, visto que até 2018 ele era um hierarca de alto escalão da IOR na Ucrânia. No contexto da nova onda de emigração ucraniana em massa, gerada pela guerra russa contra Ucrânia, no Ocidente, a IOR tenta se beneficiar da presença ucraniana em massa, atraindo os crentes ucranianos às suas paróquias
europeias.
“Jogos, Trapaças e Bispos Fumegantes”
Formalmente, Kirill ordenou que o Supremo Tribunal da Igreja avaliasse a participação do Nestor em torneios internacionais de pôquer (!) e o uso
de fundos da igreja para esse fim. Dois Cânones Apostólicos (a parte do direito canônico da IOR) — o 42º e o 43º — preveem a perda da posição de um bispo que “joga
dados”, ou seja, participa nos jogos de azar. Um cânone posterior (o 50º do Concílio de Laodiceia) proíbe o clero até mesmo de visitar locais onde tais jogos são realizados. No
entanto, no mundo moderno, o pôquer é considerado um desporto/esporte e, em muitos países, existem federações registradas ao nível nacional.
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| Metropolita Nestor num jogo do pôquer. Foto: pokernews.com |
O Metropolita Nestor joga ao nível quase profissional, participando de torneios internacionais sob as bandeiras russa e francesa com seu nome civil, Evgeny
Sirotenko. Em 2024 ele ficou em 20º lugar no Campeonato Francês e alcançou o terceiro lugar em um torneio internacional em setembro de 2025. Uma lista completa das conquistas do Metropolita em várias
ligas de pôquer pode ser facilmente encontrada no Google. De acordo com as estatísticas oficiais do “The Hendon Mob”, os ganhos totais de Nestor em torneios ao longo dos anos ultrapassaram US$ 47.000,
com sua maior vitória individual chegando a mais de US$ 8.000.
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Ranking internacional de pôquer do Nestor-Sirotenko. Imagem: pokerdb.thehendonmob.com |
Segundo o diácono Andrei Kuraev, declarado como “agente estrangeiro” pelas autoridades russas e atualmente residente em Praga, as acusações
óbvias contra Nestor “não merecem, de forma alguma, um julgamento”. A IOR passa anos sem reagir as acusações significativamente mais graves — por exemplo, o Metropolita Georgy
(Danilov) de Nizhny Novgorod, que construiu um heliporto privado nos terrenos de monumentos históricos protegidos e em cuja igreja eran filmados filmes pornográficos gay, permanece intocável. Uma fonte de uma das paróquias da IOR na Europa Ocidental disse que a ira do Kirill não foi causada pelo jogo de pôquer em si, mas pelo facto de essa informação
ser divulgada ao público.
Acredita-se que o posto de Nestor pode ser ocupado pelo atual favorito do Kirill, o metropolita Anthony (Sevryuk), de 41 anos, presidente do Departamento de Relações
Externas da IOR. Outro possível candidato ao cargo vago é o bispo Matthew (Andreyev) leal à “política externa pacifista” do Kremlin.
Paróquias russas de inteligência externa
Ao final do quarto ano da guerra russa contra Ucrânia as elites políticas ocidentais começaram a suspeitar que a IOR — no seu formato concebido
por Estaline/Stalin em 1943 — dificilmente pode ser chamada de uma organização religiosa. A função principal de muitos de seus clérigos no exterior não era o trabalho pastoral
ou o culto, mas sim o desempenho de tarefas muito mais delicadas. Já em 1946, o primeiro presidente do Departamento de Relações Externas, o Metropolita Nikolai (Yarushevich), que viajava livremente pelos
países ocidentais, exortava os emigrantes russos a “retornarem à pátria que os aguarda”. Quase todos que acreditaram nele foram presos imediatamente ao cruzar a fronteira soviética e
nunca mais retornaram vivos do GULAG. O sucessor imediato de Nikolai e pai espiritual do atual Patriarca da IOR, o Metropolita Nikodim (Rotov) era agente do KGB “Svyatoslav”. Ele abençoava os seus subordinados a colaborar com KGB e até tentou recrutar a liderança do Vaticano, mas morreu (possivelmente envenenado) durante uma audiência com o Papa João Paulo I, conhecido como “Papa
Vermelho”. Graças à desclassificação dos arquivos da KGB na Ucrânia, tornou-se público que, nas primeiras décadas após o restabelecimento do Patriarcado de Moscovo/ou
ordenada pelo Estaline/Stalin, praticamente 100% de seus bispos foram recrutados pelo KGB e se tornaram agentes ativos. Após o início da guerra russa na Ucrânia em 22.02.2022, a imprensa suica (Sonntagszeitung
e Le Matin Dimanche) publicou os materiais da inteligência suíça, com as provas do que o jovem arquimandrita Kirill (Gundyaev), que serviu como representante da IOR no Conselho Mundial de Igrejas em Genebra
na década de 1970, era o agente da KGB “Mikhailov”.
Atualmente, existem aproximadamente 300 paróquias da IOR em funcionamento na União Europeia, no Reino Unido e na Suíça, muitas das quais
com uma função de “dupla utilização”. As autoridades da Noruega, Suécia, República Checa, Grécia, Bulgária, Macedônia do Norte e dos Estados Bálticos
reconheceram a gravidade do problema dos centros de inteligência russos que operam sob os auspícios de estruturas da IOR. Por exemplo, as igrejas da IOR em Bergen e Stavanger (Noruega) estão localizadas
de forma suspeita perto de bases da OTAN, e representantes dessas paróquias tentaram comprar terrenos próximos a outras instalações militares importantes. As autoridades suecas acusaram a paróquia
local da IOR de se transformar em uma “plataforma de coleta de informações”. O governador civil do Monte Atos — uma república monástica semi autônoma na Grécia —
Anastasios Mitsialis, que chegou ao cargo diretamente da comunidade de inteligência, estava ciente dos riscos do uso contínuo do Monte Atos para atividades subversivas pela federação russa. Representantes
da IOR foram declarados persona non grata e expulsos de vários países da UE: em 2023, o arquimandrita Vassian (Zmeyev) e o arcipreste Yevgeny Pavelchuk, clérigos da IOR em Sófia; em 2024, o arcipreste
Nikolai Lishchenyuk, reitor do metóquio da IOR em Karlovy Vary em Chéquia. O metropolita Hilarion (Alfeyev) serve atualmente nesta igreja e também se queixa de ameaças das autoridades checas relacionadas
à publicação de novas revelações do seu ex-namorado japonês e ao aparecimento de um video de Hilarion num campo de tiro do FSB. Existem, é claro, muitos outros casos de agências de inteligência russas operando sob os auspícios da IOR na Europa, mas métodos eficazes para combater esse tipo de “ministério”
da IOR ainda não foram encontrados. Apesar do envolvimento óbvio e comprovado do Patriarca Kirill na incitação à agressão e nas atividades dos serviços secretos, a UE não
conseguiu incluí-lo em suas listas de sanções devido à oposição da Hungria e aos esforços do lobby russo. Em suma, a IOR provou ser um bastião confiável dos interesses
russos em áreas onde funcionários públicos e os agentes de inteligência russos comuns agora encontram extrema dificuldade de acesso. A a substituição do exarca da IOR, conhecido pela
sua postura reconciliadora e mais pacífica, por alguém leal ao FSB/GRU parece perfeitamente lógico para o atual regime russo.